segunda-feira, 6 de agosto de 2018

A potência do escrever


Misturo coisas quando falo, não desconheço esses desvios, são as palavras que me empurram, mas estou lúcido, (...) sei onde me contradigo, piso quem sabe em falso, pode até parecer que exorbito, e se há farelo nisso tudo, posso assegurar, (...) tem também aí muito grão inteiro. Mesmo confundindo, nunca me perco, distingo pro meu uso os fios do que estou dizendo. 

Raduan Nassar em "Lavoura Arcaica". 




(depois de cinco anos sem escrever, me debruço sobre o pensamento do desvio para encontrar, de novo, essa potência). 

segunda-feira, 18 de novembro de 2013

Sobre-Asas e Desejos

O mais profundo é a pele, diz Valéry. Valter Aparecido Rodrigues citou o poeta francês em suas Cartas Rizomáticas (http://letrasrizomaticas.blogspot.com.br/) em um texto de 1995 para tratar do afeto, do acontecimento, do corpo, do amor. Não sei dizer, é verdade, mas posso, sim, supor, mesmo em uma conversa imaginária, que entre os atravessamentos todos que o compunham, todo dia, como grande pensador, o cinema de Wim Wenders certamente o ajudou a construir seu deserto tão populoso de desejo e vida. O texto rizomático de Valter, agenciado, colado, conectado, multiplicado, é extendido de tal modo que sua amplitude cobre os céus e as terras de nossos cotidianos em memórias quase extraordinariamente corpóreas. Porque ele está, justamente, na profundidade que é a pele...

Em Asas do Desejo, um transcendentalismo às avessas - do ideal ao material, um só plano de consistência, a superfície do corpo. Havia anjos. Aliás, não fosse a perspicácia de Wim Wenders em usar a sobreimpressão no plano que mostra rapidamente as asas do anjo Damiel de pé no alto de um prédio, logo no começo do filme, existiriam dúvidas a respeito da natureza do personagem. Por sua vez, todo o resto do corpo de Damiel – ou melhor, a imagem do seu corpo – é devidamente humano, familiar na forma e também no conteúdo de desejo, definidor da trajetória de nossas vidas. Uma tal identidade justifica à perfeição a presença física do ator no espaço diegético em que se move o personagem. Vemos ali um corpo como o nosso, não materializado, mas um corpo de desejo tanto quanto o nosso, desejoso da sensação de tomar banho, beber um café, unir-se ao corpo de uma mulher... É um corpo que assiste ao nosso plano de existência, mas não tem contato direto com ele, não é sensorial - para nós. Mas alguma coisa aconteceu. Ainda está acontecendo. Nos prende - como prendeu a Damiel. Foi verdade à noite e é verdade agora, neste momento. Quem foi quem? Quem neste mundo pode dizer que já esteve unido a outro ser? Eu estou unido. Nenhuma criança mortal foi concebida, mas sim um quadro imortal compartilhado. As palavras de Damiel em seu diário, as últimas que conhecemos, aconteceram uma só vez. Como tudo o que acontece e, portanto, vai acontecer. A imagem que criamos nos acompanhará quando morrermos. Ela está no corpo. O que nem um anjo sabe, Damiel soube. O que nenhum humano soube, quem soube foi Valter.

O mais produndo é a pele. Disso soube o anjo de Wenders e o livre Valter. Não sei por que, inclusive, não o convidaram para terapeutizar a transição de Damiel entre os dois mundos... Essa tarefa, aliás, é das mais difíceis competências que um ser humano pode experimentar, afinal de contas, vivemos, há séculos, cindidos entre o bem e o mal, o que há em cima e em baixo, a doença e a saúde, o pensamento e o desejo... Devemos ser todos anjos de Wenders, penso agora, tentando, quando muito inspirados, sentirmo-nos eticamente as superfícies de reverberação que são os nossos corpos. 

“Quando a criança era criança, não sabia que...”, diria Damiel. O que temos: "um eis aí", diria Valter. O simultâneo, o acontecimento que abre um devir. Como para a criança. Como na dúvida. Como no afeto profundo da pele. Como no amor da falta. Como para o anjo carnal cujo manifesto prenhe de poesia nos deixou o que de mais precioso pode existir: uma máquina de produzir alegria. Uma alegria Expedicionária e Aparecida.

segunda-feira, 12 de agosto de 2013

Existe muito amor em Belém...


Já faz tempo eu não escrevia, como em meus antigos diários, sobre alguma experiência pessoal. Mas estive em Belém e Belém me atravessou de uma maneira como nunca nenhum outro espaço o fez nesses meus caminhos. Alguns poucos dias e as emoções brotadas na experiência com a cidade e as pessoas são as mais intensas que já senti. Eu poderia teorizar o momento partindo de uma filosofia que embasa minhas análises na clínica e mesmo os modos de existir na vida, mas não é isso que eu preciso fazer. De fato, não posso deixar de classificar Belém como uma cidade subjetiva, onde as grandes árvores, a quantidade de água imensurável, a arquitetura que dialoga velhas e modernas construções com tanta leveza, os sons diversos e os aromas peculiares fomentam, neste conjunto, uma surpresa que tem sabor de aconchego. Estive em uma Belém que poderia me receber com a obviedade de um evento de proposta científica. Mas o que Belém me ofereceu foi um encontro afetivo. Na universidade, sua composição ultrapassa muros e portas de maneira que ela não existe em Belém, é Belém que nela existe. E é isso que também sentimos nas falas de seus representantes: as pesquisas não tratam de quaisquer objetos cotidianos; elas apresentam sua própria vida em análise e os pesquisadores falam do que está cheio o coração. E esse autor revelado em sua obra é tão bonito!

Eu quis atrasar os ponteiros pra ficar... Tudo o que eu tenho em mim quis ficar. É um grande espanto, em meu caso, ter conseguido me abrir pra Belém. O meu corpo, que não tolera muito bem sensações térmicas muito elevadas, se rendeu ao prazer do suor e a um cansaço físico tão difíceis quanto prazerosos. É certo que a cerveja local deliciosa abrandou esses efeitos com os quais lido, costumeiramente, com intranquilidade. Até agora há quem não entenda tudo isso que estou sentindo. Minha resposta imediata diz que é necessário encontrar-se com Belém e sentir suas Ivânias e seus Maurícios, essas joias tão preciosas... É preciso sentir esse amor que tem Belém como nada tem e nem ninguém.

Eu me tornei uma árvore dessa floresta que nada tem de misteriosa. Não há desconhecidos em Belém. Nenhum componente fantástico ou da ordem da irrealidade. Belém só tem verdade, só tem pele, só tem amor. Não sei por mais quanto tempo vou precisar sentir tanta saudade. Talvez até, um dia, poder voltar. O adeus deixou pedaços lá e cá. Mas são penetrantes, adaptativos, coláveis... E por isso eu tenho mais um milhão de contos pra escrever e um milhão de causos pra contar. Eu vim de Belém e lá fiquei. Eu trouxe Belém pra os meus dias, meus horizontes, meus amigos daqui. E vou levar Belém por toda estação pela qual eu passar... bem de mansinho, pra não perder, pra não assustar, pra não deixar cair.

Existe muito amor em Belém. O jambu vai tremer na alma como as palafitas que ouviam uma nova Clara Nunes e como o meu coração que, por enquanto, ainda doi de saudades. O amor de Belém é um que nunca vou esquecer e para o qual vou correr com os maiores abraços quando puder.


Existe muito amor em Belém. E agora ele é meu também... como eu sou dele, navegando qualquer eternidade.

sábado, 8 de junho de 2013

Sobre o veneno que é a fé


Não há dúvida de que a fé está entre as manifestações mais admiráveis que existem. Olhos brilhantes, semblantes concentrados, sorrisos suaves, lágrimas marcadas, palavras delicadamente recitadas, mãos unidas, ideais em comunhão. Mas a mim me parece também não haver nenhum fenômeno tão subjugador. É porque entendemos ser criaturas e, por isso mesmo, inferiores, passivos, secundários, que nos obrigamos à obediência. Em última instância, a consequência da fé é a nossa impotência. 

Não, eu não sou incrédula da existência de Deus. Mas não me permito mais ceder à captura dos religiosismos como quando mais jovem me permiti, como todos os dias a maioria da humanidade se permite. São elas, as institucionalizações da fé, as grandes vilãs nesse trabalho sutil de nos oferecer, em troca de paz, esperança ou um pedaço no céu, uma vida servil e oprimida. 

Acredito que um Deus do constrangimento não deve nos compor. Deus não precisa ser culpado de nossas misérias e nem responsável por nossas limitações. Não deveríamos querer um Deus que só se interessa por nossa sorte ou nosso castigo. "Eu acredito é no Deus de Spinoza", tal como afirmou Einstein certa feita. Um Deus-Natureza, um Deus-Substância, um Deus da negação da teleologia, do livre-arbítrio e do desinteresse. Esse não é capaz de nos transformar em um exército impotente, marchante conforme a ladainha do pecado ou da resignação. Eu acredito em um Deus com o qual compomos o aumento da nossa potência de agir e de pensar, e não em um Deus templário, impositivo e finalista. Esse é um Deus triste... e o meu é o da alegria!

Sim, estou afirmando que essa fé é miserável! Mais que isso, é venenosa! Ela nos diminui, nos adoece, nos mortifica. Eu quero a liberdade de compreender porque as coisas acontecem quando acontecem, e não a falácia de achar que posso escolher o que quiser quando me aprouver. Eu quero os meus afetos em abertura seja para o movimento ou para o repouso. Eu quero o meu desejo e a minha experiência, sem nenhum sentido de providência. Eu quero ser meu próprio antídoto no desfazimento de qualquer tristeza... 

quinta-feira, 4 de abril de 2013

O poeta está vivo em meus moinhos de vento...


Agenor de Miranda Araújo Neto. Cazuza. 32 anos na capa da Revista Veja de abril de 1990 - três meses antes de morrer. O discurso estampado como matéria principal da revista convidava o leitor ao espetáculo de uma agonia tão particular quanto pública. Obviamente, estávamos muito (mais) aquém das estratégias e cuidados terapêuticos no combate ao HIV, e, certamente, ainda mais enraizados num paradigma confeitado e vistoso de preconceito - que parece, socialmente, fundamental para se viver em uma ordem moral vigente desde que Adão comeu a maçã. Não adentrando pelas veredas dessa temática do preconceito (deixo para uma outra oportunidade, quando as efusividades em torno das polêmicas absurdas de Marco Feliciano se forem pelo ralo), gostaria de olhar Cazuza. Hoje, o compositor e intérprete, completa 55 anos. É certo, em memória... Mas não julgo a aplicação do verbo no tempo presente inadequada. "O poeta não morreu... foi ao inferno e voltou", bem disseram Dulce Quental e Roberto Frejat. O fato é que eu adoraria tocá-lo. Adoraria abraçá-lo. Passaria por cima das minhas limitações geográfico-físicas-econômicas-todas só para vê-lo num palco, num corredor qualquer, na areia da praia ou mesmo num hospital. Eu adoraria. Mas entendo que assim, daqui de longe, desde ontem e até amanhã, eu o sinto bem mais perto. Eu o sinto em sua história, em sua poesia, em sua música. Eu o sinto em sua potência. Uma quase inesgotável. Tudo isso é o que a Revista Veja, que anunciou a morte de Cazuza, estando ainda ele em luta e amor com e pela vida, não via. O recheio referente à capa macabra findava o corpo e a obra do artista, negando qualquer chance de genialidade do autor. Quando o comparou a Noel Rosa, que viveu 26 anos e somou mais de 200 canções que "entrariam para a eternidade afora", fincou a opinião de que esse não seria o mesmo destino de Cazuza. Nada como o tempo para responder ao sensacionalismo midiático dessa espécie! É um regozijo! E sei que não falo só por mim... trago um coro de milhares de amantes de Cazuza comigo. Pois Viva, Cazuza! Em mim e em nós! Passaremos adiante, faremos releituras, sentiremos saudades... produziremos crítica, articularemos política, amaremos a vida, nos entregaremos ao desejo e às possibilidades máximas de experimentação de nós mesmos. É isso o que há nessa herança que você nos deixou! Feliz seu aniversário pra quem te ama! A sua poesia continua viva em meus moinhos de vento... 

quarta-feira, 3 de abril de 2013

Tudo encadeado e em movimento


Tudo está na natureza encadeado e em movimento – cuspe, veneno, tristeza, carne, moinho, lamento, ódio, dor, cebola e coentro, gordura, sangue, frieza, isso tudo está no centro de uma mesma e estranha mesa. Misture cada elemento – uma pitada de dor, uma colher de fomento, uma gota de terror. O suco dos sentimentos, raiva, medo ou desamor, produz novos condimentos, lágrima, pus e suor, mas, inverta o segmento, intensifique a mistura, temperódio, lagrimento, sangalho com tristezura, carnento, venemoinho, remexa tudo por dentro, passe tudo no moinho, moa a carne, sangre o coentro, chore e envenene a gordura: você terá um unguento, uma baba, grossa e escura, essência do meu tormento e molho de uma fritura de paladar violento que, engolindo, a criatura repara o meu sofrimento co'a morte, lenta e segura. Eles pensam que a maré vai, mas nunca volta. Até agora eles estavam comandando o meu destino e eu fui, fui, fui, fui recuando, recolhendo fúrias. Hoje eu sou onda solta e tão forte quanto eles me imaginam fraca. Quando eles virem invertida a correnteza, quero saber se eles resistem à surpresa, quero ver como eles reagem à ressaca. Meus filhos, vocês vão lá na solenidade, digam à moça que a mamãe está contente tanto assim que lhe preparou este presente pra que ela prove como prova de amizade. Beijem seu pai, lhe desejem felicidade co’a moça e voltem correndo, que eu e vocês também vamos comemorar, sós, só nós três, vamos mastigar um naco de eternidade...

(Chico Buarque e Paulo Pontes. Gota D’Água. Rio de Janeiro, RJ: Civilização Brasileira Ed., 1982, p.160)

terça-feira, 2 de abril de 2013

Pertencendo ao tempo...



(Máquina Zaratustra, Taanteatro)


(...) Pertence realmente ao seu tempo, é verdadeiramente contemporâneo, aquele que não coincide perfeitamente com ele, nem se adequa a suas pretensões e é, portanto, nesse sentido, inatual. Mas, justamente por isso, a partir desse afastamento e desse anacronismo, é mais capaz do que os outros de perceber e de apreender o seu tempo. (...) 

(Giorgio Agamben, em "O que é o contemporâneo"). 

(...) porque todos somos devorados pela febre da história e deveríamos, pelo menos, nos dar conta disso. 

(Friedrich Nietzsche, em "Considerações intempestivas").