domingo, 25 de novembro de 2012

Essa cicatriz no meu rosto


Eu sonho com um paciente que não tenho. Não sei seu nome. Ou não me lembro. Sei que me incomoda muito a cicatriz próximo ao seu olho direito. Essa cicatriz, profunda que é, parece deixar o olho direito com uma cor diferente do esquerdo. Não consigo, durante a sessão, olhar para outra parte que não para a cicatriz. Ele percebe. Ele sabe disso, do meu incômodo. Depois da rotina de trabalho, depois de atendê-lo, ao dormir, eu sonho - no meu sonho. E no sonho, é sempre a cicatriz que aparece. Mas quando acordo do sonho - desse em que eu também sonho - não me chama a atenção a cicatriz tanto quanto uma fala que se repete entre as quatro paredes, que se transveste em mil: "feri meu rosto porque eu precisava de uma marca de dor, de uma marca da vida". 

Às vezes penso que o paciente sou eu. Noutras vezes, estou certa de que preciso entender a função da minha dor. É que sempre produzimos marcas de dor, marcas de vida em nós. A dor e a vida nos atravessam e nos compõem alterando até a cor de nossos olhos. E nem todo aquele que os vê sabe devir esses atravessamentos, essas composições. Eu também não sei (se sei) com o meu paciente. Nem sei se sei ao despertar. 

Passam por aqui, enquanto escrevo, percepções que me causam uma espécie de obnubilação nos respiradores. Estou confusa e inquieta. Temo fazer marcas visíveis, irreversíveis. Eu não desejo marcas, embora as faça. Talvez eu prefira sombras, que se alter(n)em, se movimentem e se desenhem momentaneamente em meu corpo desconexo e aberto, perdido em si mesmo. Antes que alguém me interpele, não, isso não é uma reclamação. Esse corpo me dói. Essa desorganização me quer quase a morte. E não há tristeza ou pesar em nada disso... A tristeza talvez exista em precisar de uma marca de dor ou de uma marca da vida.