segunda-feira, 18 de novembro de 2013

Sobre-Asas e Desejos

O mais profundo é a pele, diz Valéry. Valter Aparecido Rodrigues citou o poeta francês em suas Cartas Rizomáticas (http://letrasrizomaticas.blogspot.com.br/) em um texto de 1995 para tratar do afeto, do acontecimento, do corpo, do amor. Não sei dizer, é verdade, mas posso, sim, supor, mesmo em uma conversa imaginária, que entre os atravessamentos todos que o compunham, todo dia, como grande pensador, o cinema de Wim Wenders certamente o ajudou a construir seu deserto tão populoso de desejo e vida. O texto rizomático de Valter, agenciado, colado, conectado, multiplicado, é extendido de tal modo que sua amplitude cobre os céus e as terras de nossos cotidianos em memórias quase extraordinariamente corpóreas. Porque ele está, justamente, na profundidade que é a pele...

Em Asas do Desejo, um transcendentalismo às avessas - do ideal ao material, um só plano de consistência, a superfície do corpo. Havia anjos. Aliás, não fosse a perspicácia de Wim Wenders em usar a sobreimpressão no plano que mostra rapidamente as asas do anjo Damiel de pé no alto de um prédio, logo no começo do filme, existiriam dúvidas a respeito da natureza do personagem. Por sua vez, todo o resto do corpo de Damiel – ou melhor, a imagem do seu corpo – é devidamente humano, familiar na forma e também no conteúdo de desejo, definidor da trajetória de nossas vidas. Uma tal identidade justifica à perfeição a presença física do ator no espaço diegético em que se move o personagem. Vemos ali um corpo como o nosso, não materializado, mas um corpo de desejo tanto quanto o nosso, desejoso da sensação de tomar banho, beber um café, unir-se ao corpo de uma mulher... É um corpo que assiste ao nosso plano de existência, mas não tem contato direto com ele, não é sensorial - para nós. Mas alguma coisa aconteceu. Ainda está acontecendo. Nos prende - como prendeu a Damiel. Foi verdade à noite e é verdade agora, neste momento. Quem foi quem? Quem neste mundo pode dizer que já esteve unido a outro ser? Eu estou unido. Nenhuma criança mortal foi concebida, mas sim um quadro imortal compartilhado. As palavras de Damiel em seu diário, as últimas que conhecemos, aconteceram uma só vez. Como tudo o que acontece e, portanto, vai acontecer. A imagem que criamos nos acompanhará quando morrermos. Ela está no corpo. O que nem um anjo sabe, Damiel soube. O que nenhum humano soube, quem soube foi Valter.

O mais produndo é a pele. Disso soube o anjo de Wenders e o livre Valter. Não sei por que, inclusive, não o convidaram para terapeutizar a transição de Damiel entre os dois mundos... Essa tarefa, aliás, é das mais difíceis competências que um ser humano pode experimentar, afinal de contas, vivemos, há séculos, cindidos entre o bem e o mal, o que há em cima e em baixo, a doença e a saúde, o pensamento e o desejo... Devemos ser todos anjos de Wenders, penso agora, tentando, quando muito inspirados, sentirmo-nos eticamente as superfícies de reverberação que são os nossos corpos. 

“Quando a criança era criança, não sabia que...”, diria Damiel. O que temos: "um eis aí", diria Valter. O simultâneo, o acontecimento que abre um devir. Como para a criança. Como na dúvida. Como no afeto profundo da pele. Como no amor da falta. Como para o anjo carnal cujo manifesto prenhe de poesia nos deixou o que de mais precioso pode existir: uma máquina de produzir alegria. Uma alegria Expedicionária e Aparecida.

Um comentário:

  1. "O mais profundo é a pele". Sim! É a pele. Sinto nela a alegria desta leitura.

    Com amor e saudade, Deni.

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